Aquela mulher

Ela sabia lavar, passar, cozinhar… Sem dúvidas, foi criada para ser uma exímia dona de casa. E era! Mas, queria mais. Crescida em meio há tantas outras mulheres, sentia-se um pássaro fora do ninho. Viu todas as suas amigas se casarem. Uma por uma, namorou, noivou, casou. E com menos de 25 anos de idade, já eram mães e exímias donas de casa. Mas, ela tinha outros planos. Ambicionava um futuro mais seu.
Num dia qualquer, cansada daquela vida, que a cidade inteira tentava lhe impor, decidiu ir embora. E aquela mulher menina, meio alçou voos, cresceu. Tornou-se uma mulher incrível.
Ela sabia lavar, passar, cozinha… Sabia um monte de outras coisas que a fez ser quem era. Era trabalhadora, esforçada, determinada. Admirada por muitos.
Ela morava sozinha. Numa casa pequena. Feita sob medida, em cada detalhe. Mas, a casa era sua. Tinha um carro, que também era seu. Tinha um bom emprego, um bom salário… tinha tudo o que queria. E quando digo tudo, é tudo mesmo. Muitos a olhavam e se questionavam o motivo dela ser tão sozinha. Era sozinha, porque sentia-se muito bem com sua própria companhia. Alguns ainda, diziam sentir pena daquela pobre coitada, que nunca tinha ninguém a esperando ao fim de um longo dia de trabalho. Pobre coitada? Ela é quem deveria ter pena de pessoas com este tipo de pensamento retrogrado. É bem verdade, que às vezes lhe dava vontade de ter um alguém. Mas, um alguém por inteiro. De corpo, de cheiro, e de alma também. Um alguém que a queira de qualquer maneira, e acima de tudo, si queira bem. Porém esta é uma outra história, que não vem ao caso, agora.
Ela sabia lavar, passar, cozinhar… Sabia um monte um monte de outras coisa que a fez ser quem era. E não tinha nada de pobre, e nem de coitada. Era uma mulher incrível que correu atrás de seus sonhos, e lutou por cada um deles. Galgou cada passo de sua estrada, com suor, com esforço, saudade… As vezes uma lágrima. Mas, não desistiu. Enquanto todos a sua volta a julgavam, a questionavam, ela seguia em frente e lutava. Nem todo mundo entedia suas batalhas…
_ Alô, mãe! Tô ligando pra contar, que consegui aquela promoção que eu queria. Vou morar no exterior, ser presidente de uma grande empresa…
_ Fico feliz, minha filha! Quem sabe por lá, você não arranja um marido?!

Anseios

E aquela estranha sensação de que tudo estava de pernas para o ar, vinha se aproximando dela, mais uma vez. aquele sentimento frustrante chegou de rompante tirando-lhe o foco. Neste ano, isto começava a acontecer com uma frequência irritante. Intrigante. Talvez fosse o anjo da morte lhe cobrando a nova chance que a deu. Mas, por mais que tentasse ajeitar as coisas seu mundo parecia estar fora de órbita. Num lugar onde não exista gravidade. Onde tudo parece ter vida própria. O engraçado, ou o ridículo, ou os dois, é que ela havia prometido a si mesmo, que este ano seria diferente.Viveria a diferença.
Sentada diante de um enorme calendário, que parecia gritar;”Acorda”, já conseguia ver um novo ano se aproximando… E neste mesmo calendário, ela via ali rabiscado suas promessas, para aquele ano, que agora se findava. Um ano que há pouco era novo, e agora já estava em seu estado terminal… E quantas daquelas promessas foram realmente cumpridas? Duas ou três, ou nenhuma. Não sabia ao certo. Não se lembrava com presteza. O que sabia é que este ano estava com os dias contados e com ele, um monte de promessas não cumpridas e sonhos não realizados… E os desejos daquele pobre coração que parecia apanhar ao invés de bater ia ficando mais uma vez para o ano seguinte. Aos poucos ela se dava conta de que esse ano seguinte nunca chegava de fato, e que o passar destes a afetava de maneira irreversível.
“- E os planos que eu fazia quando tinha 7 anos?” – Se perguntava enquanto revirava fotos antigas.
É tão mais fácil ser criança. Se soubéssemos disso não desejaríamos tanto crescer. Crianças sonham à longo prazo. Li um dia, em algum lugar, algo que me fez parar e refletir: “A criança que você foi, teria orgulho do adulto que você é?” Talvez fosse isso o que ela estivesse se perguntando agora. E aquele misto de tristeza e inveja, que ela sentia ao ver a alegria alheia a sufocava. Talvez inveja não seja a palavra, mas… sei lá.
Dizem que é aos poucos que a vida vai dando certo. Pode ser que a dela esteja dando e ela não conseguiu perceber ainda por causa dessa mania de viver oscilando entre o passado e o futuro.
Enquanto isso, a lua invadia seu quarto iluminando a mesa amontoada com livros, fotografias e doces, e lhe sorria crescente, como se afirmasse que o melhor ainda está por vir.images

Medos

Eu tenho medo!

Tenho medo do sapo que pula.

Da barata que voa.

Medo de animais que rastejam…

que falam, ferem, magoam…

Tenho medo de dormir e não mais acordar.

Tenho medo de me deitar e não conseguir dormir.

No meio da noite,

tenho medo dos meus pensamentos.

Daqueles mais bobos, mais soltos… Tão meus!

Tenho medo de me perder no medo e de ver minha vida passar,

como está passando agora.

Pelo janela do ônibus, pelo ralo do banheiro, no conforto meu travesseiro.

Tenho medo da minha vida de mentiras,

dos sonhos que crio pra satisfazer meu ego e o meu medo de não ter histórias…

Eu tenho medo de ver que tudo que vivi foi em vão.

E o medo maior é este sentimento de que nada vivi.

Poderia ter vivido mais e ter feito coisas incríveis,

mas, tenho medo!images

Tenho medo dos meus medos e me abraço com ele, porque a solidão me assusta!

Um conto em três contos – O final dela

Ha quem diga que foi obra do acaso. Acredito eu, que o encontro dos dois foi detalhadamente planejado… Lá vinha ela, com toda sua distração encantadora. Caminhava um tanto perdida, como já lhe era casual. Neste dia, talvez, um pouco eufórica e extremamente ansiosa. Havia decidido parar de fumar e a abstinência à nicotina a descontrolava ás vezes. Vinha ela com o fone nos ouvidos, embora não estivesse ouvindo absolutamente nada. Simplesmente caminhava. Em sentido contrário ao dela, vinha ele. Parecia apressado, nervosa, atrasado. Falava ao telefone. Passaram um pelo outro, e não se viram. Mas ela o percebeu. Sentiu seu cheiro que ficou no ar. Se virou como nos desenhos animados, procurando aquele ser cheiroso que cruzou seu caminho. O perdeu na multidão. Mas aquele cheiro tão peculiar, não saiu de sua mente. Os dois seguiram seus caminhos. E este poderia ter sido o fim. E ela poderia chegar em casa, sentar-se diante de sua tristeza, e escrever mais um conto. Um conto sobre uma menina distraída que perdeu um possível amor de sua vida. Que o deixou ir, sem sequer vê-lo. Mas, ficou com a fragrância do perfume, seu cheiro…
E como o encontro dos dois foi detalhadamente planejado, nada aconteceu ao acaso. Ela sentou-se no parque. Saboreava um sorvete. Precisava de alguma maneira distrair o desejo de fumar. E aquele cheiro que já lhe era quase um sonho, se fez presente intensamente. Ergueu os olhos e viu um homem sentado no banco a sua frente. Olharam-se. Ao sentir-se quase nua com a maneira que ele a fitava, ela rapidamente baixou a cabeça. Apaixonou-se. Pelo cheiro, pelo olhar, pelo sorriso… Como não acreditava em amor a primeira vista, decidiu erguer os olhos e olhá-lo mais uma vez. Ou duas, três, ou seis… E ele ali, ainda a intimidava com o olhar. Ele que a embriagava com seu perfume barato, se apaixonou pelo seu sorriso tímido. Seus olhares se cruzaram. Ele sorriu. Ela tentou segurar o coração que parecia querer saltar para fora do peito…
E como dois adolescentes, que já não eram mais, se envolveram aos pouquinhos. Primeiro uma troca de olhares no parque, depois, um entrelaçar de mãos trêmulas… Corpos próximos, olhos nos olhos. O roçar da barba por fazer arrepiando-lhe a nuca. O calor do bafo quente ao pé do ouvido. Um beijo, um abraço, um carinho, um afago… e isso já faz quase um mês! E o telefone tocou no dia seguinte. E no outro também. A felicidade era tão grande que assustava.
Vestida para sair com ele, ela, começou a conferir se estava tudo em ordem, para passar a trinca na porta. Não estava. Sobre a escrivaninha havia um caderno cheio de rabiscos, uma caneta mordida, algumas bolinhas de papel,um doce mordido, uma taça de vinho pela metade, e uma garrafa quase cheia. Caminhou até lá. Leu as poucas linhas traçadas por ela há tempos, e tentou prosseguir o raciocínio. Em vão. Tomou o vinho da taça. Rabiscou algumas coisas sem sentido. Encheu novamente a taça. Bebeu de uma só vez. O telefone tocou. Era ele. E agora o que fazer ¿ Queria tanto escrever. Neste momento, sentia necessidade disso. Maldita alegria que transbordava. Maldito amor que lhe tirava o folego, o sono, a inspiração… Felicidade clandestina! O telefone tocava insistentemente. Ela, covarde que foi, bebeu, chorou e dormiu…
“Hoje a tristeza não é passageira… Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida. Ou fingir estar sempre bem…”

Um conto em três contos – Ela por Ela

escreverEu nunca soube me expressar.Talvez por timidez, ou porque as pessoas parecem não querer me ouvir. Eu sempre fui boa em ouvir. Sempre estive ali. Pronta, disponível, inteira. Acho que todo mundo gosta mais de falar do que de ouvir. Talvez por isso, eu goste de ouvir. Sempre fiz parte do grupo minoritário. Eu quis muito falar. Tenha tanta coisa pra dizer. Mas, nada disse. Sempre me calei. Me calo. E a vontade de falar me agredia por dentro. Também tinha conquistas para gabar-me, tristezas para lamentar, estórias de amor, piadas, mentiras… Qualquer coisa. Qualquer fala. O que não tinha de fato, era alguém para ouvir.
Eu nunca soube me expressar, olhar nos olhos. As palavras não saiam. Algo as sufocavam por dentro. E o que era pra ser dito, se transformou em traço, em letras. Aí eu conto um conto. Dois, três, vários. Disfarço-me de personagem. E aqueles que não souberam me ouvir, me leem, curtem, releem.
Eu nunca soube me expressar… Eu nunca muita coisa. Nunca fui a mais bonita da classe. Nem a mais inteligente. Nunca fui a mais cobiçada entre as amigas. Nunca, nunca, nunca. Eu fui a filha do meio. De modo que também não era o orgulho da mãe, nem o xodó do pai. Ser do meio, é só o quase. Quase a mais velha. Quase a caçula. E assim como Veríssimo, tenho um certo desgosto pelo quase…
Porém foi o quase, o nunca, o talvez, quem me inspirou. As minhas pequenas frustrações e tristezas foram minhas companhias diárias.
E quando as pessoas me leem e perguntam o porquê meus contos são tão tristes, eu respondo:
– A tristeza é minha fonte de inspiração mais profunda e fértil!

“…Eu nem sei porque me sinto assim. Vem de repente um anjo triste perto de mim…”

Um conto em três contos – Ela

Já era hora do sol raiar. Mas nesta manhã ele resolveu descansar um pouco e não se fez presente. Pela milésima vez, o despertador do celular tocava.Era definitivamente hora de se levantar. Ela, porém, reativou a função soneca do aparelho. A manhã estava tão preguiçosa e fria, e silenciosa e vazia. A vontade de se levantar não aparecia. A cabeça doía. Latejava incessantemente… Mais uma vez, o despertador. Num ato de extrema fúria, apanhou o aparelho e quis lançá-lo contra a parede. Se conteve a tempo. Sentou-se na cama, segurando a cabeça que parecia pesar uma tonelada, com ambas as mãos.
O espelho a sua frente refletia aquela pobre imagem um tanto assustadora; cabelos desgrenhados, olhos vermelhos e olheiras profundas, rímel escorrido pela face e batom borrado. Cheirava à álcool. Ela assustou-se ao se ver refletida um tanto desfigurada. Levantou-se e desviando-se dos objetos espalhados pelo chão do quarto, aproximou-se do espelho. Olhava-se fixadamente. Estava um lixo! O quarto, a aparência, a vida. Enquanto se olhava, repetia para si mesmo: ” -É só hoje e isso passa. Amanhã é outro dia…”
E enquanto mentia para si mesmo, tentava confortar-se com sua vidinha medíocre. As lágrima vinham, o rímel escorria, a cabeça doía…
Respirou fundo, prendeu os cabelos, secou as lágrimas. Começou a revirar os armários, jogando para fora todas as roupas. Abriu gaveta por gaveta da cômoda. Perdido em tanta bagunça, encontrou o que procurava. Sentou-se no chão abraçando ambas as pernas com uma das mãos e acendeu um cigarro. Há alguns dias, havia decidido parar de fumar, mas diante de tudo que lhe acontecera na noite passada, a nicotina era um de seus menores males…
“E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima.”

Conto Pingado

engraxate-2Era um menino pobre! Não passava fome, mas teve que trabalhar desde muito jovem. Não teve tempo para jogar futebol, brincar de queima, esconde-esconde… Não pôde subir em árvores, correr nas ruas… Não tinha brinquedos caros, nem roupas bonitas, nem chinelos novos… Não tinha quase nada, mas tinha muito. Tinha uma felicidade nos olhos, uma família que o amava, uma cama para dormir, um caderno de 20 folhas para estudar e uma caixa de engraxate para trabalhar.
Era um menino rico! Rico de esperanças, sonhos, determinação. Levantava todos os dias bem cedo. Ao nascer do sol, já estava de pé. Vestia-se, lavava o rosto e os dentes, penteava os cabelos crespos com a velha escova de lavar roupas e corria até a cozinha. Lá já estava a sua espera um pedaço de pão e um copo de café com leite. Nem sentava para o desjejum. Fazia tudo as pressas. De barriga cheia, calçava se velho chinelo de correias diferentes, colocava o caderno embaixo do braço, beijava a mãe e saía apressado arrastando a caixa de engraxate.
Passava a manha inteira trabalhando próximo a uma padaria. A tarde corria para a escola. Junto com o pôr do sol, se punha também! Chegava cansado. Ajudava a mãe e os irmãos nos afazeres de casa, jantava e dormia cedo.
Era um menino otimista! Ansiava por dias melhores. Dias sem o sol tão quente, dias com mais clientes, dias mais claro, dinheiro mais fácil. Sonhava com o dia em que entraria nos lugares sem ser medido dos pés a cabeça. Acreditava que dias melhores viriam e talvez por isso, virão.
Era um menino determinado! Há tempos ele vinha juntando seus trocados para um propósito. Ele queria satisfazer um desejo. Um desejo bobo, quase egoísta, porque era só seu. Sempre ajudou em casa com o dinheiro que ganhava, mas há algum tempo ajudava com menos, porque queria comprar algo. Trabalhava próximo a uma padaria e sempre ouvia seus clientes dizer que queriam um “pingado”. Todo mundo tomava um pingado. E isso o instigou a querer um também. Ele não fazia ideia do que seria um pingado, mas decidiu que juntaria seus trocados para comprar um.
Numa manhã, ele se levantou, vestiu-se, lavou o rosto e os dentes, penteou os cabelos crespos com a velha escova de lavar roupas e correu até a cozinha. Não quis tomar café. Em fim ele tinha dinheiro suficiente para comprar o seu pingado. Beijou a mãe, calçou seus chinelos velhos, pegou seu caderno, a caixa de engraxate e as moedinhas que juntara. Saiu apressado.
Entrou então na padaria um menino arrastando uma caixa de engraxate. Trajava roupas velhas, porém muito limpas. Cabelos crespos, mas bem penteados. De pés rachados, mas calçado. Era um menino pobre, mas trazia consigo um saco de moedas. Nas pontas dos pés ele conseguiu alcançar o balcão e depositando as moedas sobre o mesmo pediu:
– Moça, um pingado, por favor!
Os olhos do menino brilhavam enquanto aguardava seu pedido. Não cabia em si com tamanha ansiedade. Logo, com um sorriso no rosto, a garçonete depositou sobre o balcão uma xícara…
Era um menino pobre, que tomava pingado todos os dias e nem se dava conta disso!

Verdade Inventada

Então o natal se aproxima, e junto com ele toda esta agitação natalina que se difunde com costumes europeus e consumismo. Esquecendo-se de fato o verdadeiro significado da data. Ela não gostava muito desse natal importado aderido em seu país tão tropical. Sentia arrepios e tonturas ao ver o pobre velhinho envolto naquele agasalho vermelho. O sol “rachando”, quarenta graus na sombra, é lá estava aquele homem sendo obrigado a distribuir sorrisos. Ela o via com a mesma piedade que via o palhaço. Aquele pobre coitado de cara pintada, nariz vermelho, que tem que sorrir e fazer palhaçada, mesmo tendo uma vida desgraçada.
Caminhando pelas ruas movimentadíssimas do centro comercial da cidade, ela procurava entre uma vitrine e outra, um presente para seu amigo secreto. Odiava esse jogo. Sempre se frustrara com os presentes que ganhara. Mas aquela brincadeira sem graça, que não agrada a quase ninguém, já era habitual nas festas de fim de ano de sua família.
Há alguns anos ela havia ido embora de sua cidade e desde então, não mais viu sua família, não mais participou das festas de natal, nem trocou presentes. Este ano, todos se reencontrariam. Ela estava ansiosa. A saudade não cabia no peito. Era hora de rever a família, os amigos, a cidade…
Enquanto arrumava as malas, ela se perguntava se havia escolhido a melhor data para a viagem. Eram nestas malditas festas de família, onde todos se reuniam, que todos queriam mostrar o quanto cresceram, o quão se deram bem na vida. Muitos queriam dar lição de moral. Era nestas festas que a família se reunia para falar uns dos outros. Nem sempre bem…
Todos da sua idade já tinham filhos, estavam casados, eram noivos ou tinham namorados… E ela? Ela não tinha nada. Se quer um cachorro. Tinha um gato. Um gato de rua que às vezes invadia sua cozinha pra roubar os restos de comida, que caiam no chão. Gato sem dono, sem lar, sem destino. Gato este que às vezes se compadecia dela, e num ato repentino de amor, a acariciava em noites frias, se aconchegava a ela, por um dia ou dois. E depois sumia por semanas. E depois voltava à surdina para roubar comida na cozinha. Assim também eram seus amores. Amores de um dia, ou dois, que se enlaçava em seus braços, se deleitava em sua cama e depois saía como o gato. Este era um dos motivos de sua solteirice. Ou era apenas a desculpa que ela dava aos amigos. Pois em verdade convivia muito bem com sua solidão. Sentia-se forte nela. ‘Não tinha medo de chuvas tempestivas, nem de grandes ventanias soltas. Ela era também o escuro da noite’.
Sentia-se bem naquela sua vidinha, mas, sabia que seria apontada naquela maldita reunião de família. Já conseguia ouvir as perguntas frequentes a respeito dos filhos, marido, namorado, companheiro, cachorro…
“Então é Natal!” Então é hora de esquecer os problemas, estampar um sorriso no rosto e sair por aí distribuindo abraços e presentes. Máscara pronta! Decidiu que seria mais fácil ser quem todos quisessem que ela fosse. E dizer que tinha um namorado novo, um cachorro bagunceiro, um anel de compromisso. Uma história de conto de fadas, que os deixassem orgulhosos dela. Pronta pra viajar, colocou na mala umas mentiras para contar…

Notas sobre a amizade

Oswaldo caminhou com passos trôpegos e vagarosos até aquele banco que sentava-se aos domingos. Deu um longo suspiro e observou os outros bancos ao redor da mesa vazia. Quanto tempo se passara já não sabia mais. Fora ali que tivera seus momentos mais memoráveis e acreditava não haver narrativa mais bela do que aquela de como surgiram.

Eram amigos desde sempre. Na verdade, quase não se lembrava mais o que os tinham levado ao mesmo caminho, mas assim permaneceram. Adorava as tardes de domingos onde passavam horas divertidas a jogarem sob o sol e sombra das árvores, regados a cervejas e gritos. Esses encontros eram sagrados e a vida tinha sabor de amizade. Mesmo sob os protestos das jovens senhoras e dos filhos a brincarem ao redor da mesa da praça, lá eles ficavam a tornar mais alegre o início da semana. Eram horas que passavam tranqüilas e sem se fazerem percebidas. Mas o tempo se fazia sentir nos filhos que já não os acompanhavam e nas mudanças das estações. Aos poucos as bebidas rareavam, alguns mesmo por ordens médicas. Os gritos se davam ainda, mas sob a suavidade dos ventos e as têmporas se enfeitavam com o branco do tempo.

Sentado a sua frente sempre ficava Eduardo, o eterno bom vivant, aquele que sabia o telefone de todas as garotas solteiras e de todos os bons bares. Foi naquela mesa que viram um Eduardo constrangido confessar que se apaixonara e pretendia pedi-la em casamento. Gritos e vaias acompanharam suas palavras e todos sabiam que ele nunca mais seria o mesmo. Tornou-se o melhor e mais responsável pai de família e sempre era o primeiro a partir, sorrindo misterioso quando todos lhe zombavam uma obediência feminina, seu sorriso a esconder os mistérios do casamento. Eduardo que a estrada lhes tirara de forma repentina num trágico acidente.

Ao seu lado direito sentava-se o bom e velho João. O João de gargalhada solta e ressequida pelo cigarro. O mais sentimental de todos, não levava lenço nos bolsos para que as lágrimas não se inibissem e quando reclamavam do atraso no jogo dizia não carregar relógio para não macular o tempo com a prisão das horas. O poeta do grupo transformava poesia em palavras, sempre regadas a muito álcool. Foi ali que chorou a ausência do irmão e nunca mais ouviu-se a risada alta. Bebia ainda mais e sempre trazia o parceiro que o acompanhava nos jogos, pois era preciso substituir o irmão ausente, mas trazia consigo a desconfiança dos abraços. Sabiam que os jogos não eram os mesmo. Ofendia a memória sentida do outro, mas continuavam para também eles não se perderem. Fora também ali que confessara que não queria mais os assombros que carregava na alma e a solidão dos sorrisos, queria mesmo a delicadeza dos silêncios. Uma pena não terem compreendido com clareza suas palavras. Naquela mesma noite foram surpreendidos com a notícia de seu suicídio.

Do seu lado esquerdo sentava-se o bom amigo Gustavo. Sereno e tranqüilo era a personificação do bom pai e trabalhador. Trazia consigo as certezas dos simples e nunca questionava nada. Aceitava tudo o que acontecia com a complacência dos que não entendem o caminho. Aceitou a perda do amigo Eduardo acreditando que todos tinham um caminho a seguir. Era o que mais consolava João, mesmo sem compreender seus desassossegos.  Mas foi ao receber a notícia de seu suicídio que viu-se frente a frente com a incompreensão. Não suportou as lembranças e ausências. Fora ali que tiveram a última conversa. Avisava que tinha se decidido a mudar com a família de volta ao interior, precisava da paz que deveria ser encontrada na pequena cidade, pois não entendia o jogo duro das cidades grandes. Foi o último jogo, o último abraço.

Oswaldo suspirou tristemente frente a lembranças que teimavam em chegar. Lágrimas vinham aos olhos e ainda depois de tanto, tanto tempo a presença de todos era forte naquele lugar. Agora os anos havia lhe visitado por inúmeras vezes e o baralho em suas mãos já não era firme. Chegara-se ao limiar da indefinição e futuro não era mais palavra real.

Observou novamente a mesa. Um vento suave passou a soprar e com assombro ouviu as risadas perdidas. Chegou a levantar-se e olhar em volta. Quando voltou a sentar, de repente uma alegria grande agigantou-se no peito. Com tranqüilidade repousou a cabeça sobre a mesa e sorriu feliz. Os amigos estavam de volta. Distribuíam as cartas, sob a fumaça dos cigarros e as gargalhadas tranqüilas. Oswaldo não se surpreendeu, sorriu também recebendo as cartas entregues, e partiu para o melhor dos jogos.

Ficção Real

O táxi parou em frente ao prédio. Estava ela de volta á seu apartamento minúsculo, seus vizinhos desconhecidos, seus amigos interesseiros, seu trabalho de subalterno, sua vidinha maquinada. Havia feito uma viagem maravilhosa. Há tempos não se divertia tanto. Como foi bom rever amigos de verdade, ser abraçada de verdade, sorrir de verdade… Segurando sua mala, abraçando-a contra o peito, se deixou ficar por alguns instantes na calçada, com os olhos cheios de lágrimas. Olhava a cidade que há tempos não via. Admirava a cidade que já era sua. Talvez deixasse de ser. A viagem que fizera a fez pensar se já não era hora de partir. Se nada de fato a prendia ali, por que ficar? E foi assim, que ao invés de desfazer a mala que trazia consigo, subiu a seu apartamento e começou a fazer outras malas. Passou a noite inteira encaixotando seus pertences. Na manhã do dia seguinte mandou tudo embora.  Arrependeu-se no fim da tarde, ao retornar a seu apartamento e encontrar um grande vazio.  Nada mais ali era seu, e as lágrimas vieram. Chorou por horas deitada no chão frio, onde na noite anterior havia um tapete, um sofá, uma mesa de centro… Nestes momentos de tristeza sem fim, em que não conseguia um abraço amigo para confortar-se, ela escrevia. No papel transpassava toda sua dor. Virava ela personagem de sua própria história, que nas curvas das letras traçadas, pareciam mais interessantes. A tristeza a inspirava, a instigava. Escrever a acalmava, a confortava. Depois do rompante surto de arrependimento, ela pegou a única mala que sobrara e saiu sem olhar pra trás. Tinha medo de olhar e desistir de partir […].

[…] O táxi parou em frente ao prédio. Ventava incessantemente anunciando a chegada de uma forte chuva. Ela desceu com ar de cansada. Tudo que desejava agora era um banho, uma xícara de chá, e um abraço. Tudo bem quente, de preferência. Segurando sua mala, abraçando-a contra o peito, se deixou ficar por alguns instantes na calçada. Estava de volta. Estava em casa. Admirava a cidade que já não era mais sua. Talvez voltasse a ser. Adentrou o prédio, subiu três lances de escada e parou diante de uma porta. 444. Este era o número de seu novo apartamento. Quatro, era seu número da sorte, mas angustiada com a mudança nem havia se dando conta deste detalhe. Entrou em casa e colocou a mala no chão sorrindo. Seus pertences já estavam ali. Seus móveis, seus livros, roupas e bibelôs. Tudo devidamente arrumado. Sentiu-se realmente em casa. Na mesa de centro, um bilhete da mãe que preparara tudo, a desejava boas vindas. Enquanto lá fora chovia, de seus olhos corriam lágrimas. Ela não sabia explicar o motivo. Talvez tristeza por estar de volta, talvez alegria por estar em casa, talvez emoção, talvez nada.

Os dias se passaram depressa e aos poucos ela foi percebendo que não há melhor lugar no mundo do que dentro de um abraço apertado de quem nos ama de verdade.

Terminou de escrever e deitou-se mais calma. Antes de dormir, certificou-se de que o despertador tocaria na manhã seguinte.