Notas sobre amor platônico, sádico e outras impossibilidades kafkianas.

Este texto retoma a história publicada no dia 14 de março, clique aqui para retomar a primeira parte.

Fim do dia, fim da semana e só pensava em descansar. Ser professor cansa. Já sentia saudades de quando era aluno.

Quando chega em casa encontra um papel todo enfeitado escrito com lápis de cor e um pouco amassado dentro do diário de sala. Endereçado ao professor o texto escrito em letra quase incompreensível dizia:

“Se uma estrela cadente o céu cruzar
E uma chama no corpo me acender
Vou fazer um pedido e te chamar
Pra o começo do sonho acontecer

Quando os dedos tocarem lá no céu
O universo vai todo estremecer
E as estrelas rodando em carrossel

Testemunhas de amor, eu e você
As batidas do nosso coração
Se acalmando depois da explosão

Quando o sol se prepara pra nascer…
As noites sabem como eu te esperei
Não conto pra ninguém
A lua sabe que eu me apaixonei

Se você é real, porque você não vem?!

Meu coração vai se abrindo
É o amor, sinto seu pulsar
quero dizer que penso muito em você

Em cada borbulhar de paixão
Mil pensamentos se explodem em mim
E eu não consigo estancar”

Carta assinada pela aluna desaparecida daquela manhã.

Ficou assustado com o conteúdo. Uma menina tão novinha com tantas ideias?

Na semana seguinte ao retornar à escola comentou com a professora sobre a carta com uma das colegas que sorrindo reconheceu a origem do texto: música de Zezé di Camargo e Luciano. Um alívio, pelo menos sabia de onde a pequena tinha tirado aquelas ideias.

Agora restava um problema. Como reagir?

Na universidade aprendeu que ser platônico podia ser um caminho para levar os alunos ao conhecimento. Um jogo simples de usar esse amor para incentivar a estudante a ler mais, a se engajar nas aulas e com o tempo transformar esse amor em um amor pelo saber.

Outra coisa que também aprendeu um pouco foi como ser sádico nesse processo. Educação envolve interferência na liberdade do outro. Uma oportunidade de tirá-la daquele universo de textos sertanejos, etc. Talvez não fosse o caso para o momento.

Um pouco de preconceito da parte dele, até que o texto da carta não era tão ruim. Mas pensava que a música poderia ser o mote para aulas sobre outras músicas sobre tantos e variados temas.

Mas a comunicação na escola tem seus próprios caminhos. E se liga muito bem à vigilância da burocracia. Caminhos que acho que não agradariam a Platão e muito menos ao velho Marquês de Sade.

Bom dia professor. Posso ver a carta que recebeu e o seu diário se aula?

Hummm, muito bem. Registremos a ocorrência da sexta-feira e anexe a carta da aluna. Não falemos no assunto e se voltar a se repetir me avise que falo com ela. O senhor tem de se precaver caso algo aconteça.

A burocracia tem um jeito específico e muito próprio de lidar com os sentimentos de uma criança. Assim se administra a situação. Talvez uma conversa franca sobre o assunto resolvesse muito melhor, mas vai ver um relatório é uma forma mais eficaz de matar qualquer amor. Talvez hoje com quase 30 anos de idade, sei lá, quando aquela menina parar e lembrar dessa época ela lembre da frieza, do mau cheiro, do mau humor do professor. Talvez isso tudo vinha daí, do relatório.